13 de fevereiro de 2013

António Manuel Marques, A Imperfeição do Presépio


O início de cada capítulo com descrição e análise do conteúdo de uma caixa de recordações com fotografias e recortes antigos guardados no seu interior é o pretexto para a história de uma família de classe baixa, que migrou do meio rural do Ribatejo para os (então) arredores de Lisboa, mais precisamente para uma barraca na Quinta do Olival, Benfica. O narrador da história é uma mulher, da qual não sabemos o nome, tal como não sabemos de nenhuma personagem, pois tal não é necessário, pretende-se contar a história de uma família mas que se adequa à maioria das histórias das famílias que viviam naquelas condições. A história de uma mulher, esposa, mãe, que trabalha como empregada doméstica, com quatro filhos, dois dos quais vão combater para a guerra do Ultramar, com um marido analfabeto, com gosto pela pinga, que por vezes lhe arreia, que trabalha na escavação das canalizações de água e para quem “só quem tinha as mãos grossas do trabalho é que merecia o que comia. De resto não era trabalho. Tudo calões.” (p.46)
Interessante a descrição da zona de Benfica, “Eram quintas, seguidas umas às outras. Do Calhariz até a meio da Estrada de Benfica eram quintas, e era cada casarão… Com os portões virados para a Estrada, algumas pouco se alcançava lá para dentro, mas outras deixavam ver.
Doutras pouco se via. Abriam-se às vezes os portões quando se ia pelo passeio e de lá saíam os carros com as fanchonas dentro, com chofer e tudo. Aos poucos, tudo se foi indo. Do dia para a noite, apareceram aquelas matacões, prédios por todo o lado.” (p.54)
Algumas alterações ocorridas entre década 30 e 70 do século XX são descritas no livro de forma bastante curiosa, tal como a alteração das missas em latim, “E depois, a missa. Mudam até as palavras… Dizem que foi Deus quem escreveu a Bíblia e andam então a mexer nela. Que nem se fica a perceber estas palavras novas, nem se pode acompanhar a missa. Ainda sou do tempo em que se dizia a missa em latim. Sabíamos tudo de cor. Não percebíamos nada, mas era bonito e seguíamos todos pelo mesmo tom. Tínhamos tudo na ponta da língua e muito respeito.” (p. 70) ou o desejo de certos casais de que um filho fosse padre “Aquela beata falsa era uma rata de sacristia que para ali estava, a pô-lo no Seminário. Morria se não tivesse um filho padre;” (p.71).
Interessante a descrição da vergonha sentida por se encontrar grávida já com três filhos a seu cargo e em estado avançado de idade e o autor descreve isso de forma brilhante. “Se devia tê-lo? Sabia lá eu se devia começar já a vê-lo, a pensar em como seria… E se fizesse como as mais e o mandasse para a Casa Pia? A maioria é assim que faz: não se pode, desmancha-se. Eu sabia que era bem capaz de pôr aqui esta coisa nova e manter tudo como está, sem grandes voltas. Continuaria na labuta, sem me cansar, a olhar para todos, a rir-me, pronta a ajudar quem precisa […] Sim, sentia vergonha; já grisalha, a barriga a empinar-se em licença, esta coisa pequena a protestar quando andava de joelhos nas limpezas.” (p.16 e 17)
De notar que gostei especialmente da citação inicial, fazendo antever o óbvio, só escreve uma história desta forma, quem teve directo contacto com as personagens-tipo que nela habitam.
“Sim, toda a novela, toda a obra de ficção, todo o poema, quando é vivo é autobiográfico.
Todo o ser de ficção, toda a personagem poética criada por um autor faz parte do próprio autor.” Miguel de Unamuno,Como se faz uma Novela.
Acho que é uma história escrita de forma concisa, directa e crua, sem cair no aberrante ou exagerado. Lê-se num ápice e com agrado, pois transpira realidade em todas as linhas. Retrata o presépio de uma família portuguesa de condição socioeconómica baixa, do século XX. Recomendo.

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